CAMINHO

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FÉ - ESPERANÇA - PAZ - AMOR

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

EXORTAÇÃO APOSTÓLICA - 2

VERBUM DOMINI- Exortação Apostólica Pós-Sínodal
Sobre a Palavra de Deus
  
I Parte - VERBUM DEI


"No princípio já existia o Verbo,
e o Verbo estava com Deus,
e o Verbo era Deus (…)
e o Verbo fez-Se carne" (Jo 1, 1.14)


O Deus que fala

Deus em diálogo

6. A novidade da revelação bíblica consiste no facto de Deus Se dar a conhecer no diálogo, que deseja ter connosco.[14] A Constituição dogmática Dei Verbum tinha exposto esta realidade, reconhecendo que «Deus invisível na riqueza do seu amor fala aos homens como a amigos e convive com eles, para os convidar e admitir à comunhão com Ele».[15] Mas ainda não teríamos compreendido suficientemente a mensagem do Prólogo de São João, se nos detivéssemos na constatação de que Deus Se comunica amorosamente a nós. Na realidade, o Verbo de Deus, por meio do Qual «tudo começou a existir» (Jo 1, 3) e que Se «fez carne» (Jo 1, 14), é o mesmo que já existia «no princípio» (Jo 1, 1). Se aqui podemos descobrir uma alusão ao início do livro do Génesis (cf. Gn 1, 1), na realidade vemo-nos colocados diante de um princípio de carácter absoluto e que nos narra a vida íntima de Deus. O Prólogo joanino apresenta-nos o facto de que o Logos existe realmente desde sempre, e desde sempre Ele mesmo é Deus. Por conseguinte, nunca houve em Deus um tempo em que não existisse o Logos. O Verbo preexiste à criação. Portanto, no coração da vida divina, há a comunhão, há o dom absoluto. «Deus é amor» (1 Jo 4, 16) – dirá noutro lugar o mesmo Apóstolo, indicando assim «a imagem cristã de Deus e também a consequente imagem do homem e do seu caminho».[16] Deus dá-Se-nos a conhecer como mistério de amor infinito, no qual, desde toda a eternidade, o Pai exprime a sua Palavra no Espírito Santo. Por isso o Verbo, que desde o princípio está junto de Deus e é Deus, revela-nos o próprio Deus no diálogo de amor entre as Pessoas divinas e convida-nos a participar nele. Portanto, feitos à imagem e semelhança de Deus amor, só nos podemos compreender a nós mesmos no acolhimento do Verbo e na docilidade à obra do Espírito Santo. É à luz da revelação feita pelo Verbo divino que se esclarece definitivamente o enigma da condição humana.

Analogia da Palavra de Deus

7. A partir destas considerações que brotam da meditação sobre o mistério cristão expresso no Prólogo de João, é necessário agora pôr em evidência aquilo que foi afirmado pelos Padres sinodais a propósito das diversas modalidades com que usamos a expressão «Palavra de Deus». Falou-se, justamente, de uma sinfonia da Palavra, de uma Palavra única que se exprime de diversos modos: «um cântico a diversas vozes».[17] A este propósito, os Padres sinodais falaram de um uso analógico da linguagem humana na referência à Palavra de Deus. Com efeito, se esta expressão, por um lado, diz respeito à comunicação que Deus faz de Si mesmo, por outro assume significados diversos que devem ser atentamente considerados e relacionados entre si, tanto do ponto de vista da reflexão teológica como do uso pastoral. Como nos mostra claramente o Prólogo de João, o Logos indica originariamente o Verbo eterno, ou seja, o Filho unigénito, gerado pelo Pai antes de todos os séculos e consubstancial a Ele: o Verbo estava junto de Deus, o Verbo era Deus. Mas este mesmo Verbo – afirma São João – «fez-Se carne» (Jo 1, 14); por isso Jesus Cristo, nascido da Virgem Maria, é realmente o Verbo de Deus que Se fez consubstancial a nós. Assim a expressão «Palavra de Deus» acaba por indicar aqui a pessoa de Jesus Cristo, Filho eterno do Pai feito homem.


Além disso, se no centro da revelação divina está o acontecimento de Cristo, é preciso reconhecer que a própria criação, o liber naturae, constitui também essencialmente parte desta sinfonia a diversas vozes na qual Se exprime o único Verbo. Do mesmo modo confessamos que Deus comunicou a sua Palavra na história da salvação, fez ouvir a sua voz; com a força do seu Espírito, «falou pelos profetas».[18] Por conseguinte, a Palavra divina exprime-se ao longo de toda a história da salvação e tem a sua plenitude no mistério da encarnação, morte e ressurreição do Filho de Deus. E Palavra de Deus é ainda aquela pregada pelos Apóstolos, em obediência ao mandato de Jesus Ressuscitado: «Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa Nova a toda a criatura» (Mc 16, 15). Assim a Palavra de Deus é transmitida na Tradição viva da Igreja. Enfim, é Palavra de Deus, atestada e divinamente inspirada, a Sagrada Escritura, Antigo e Novo Testamento. Tudo isto nos faz compreender por que motivo, na Igreja, veneramos extremamente as Sagradas Escrituras, apesar da fé cristã não ser uma «religião do Livro»: o cristianismo é a «religião da Palavra de Deus», não de «uma palavra escrita e muda, mas do Verbo encarnado e vivo».[19] Por conseguinte a Sagrada Escritura deve ser proclamada, escutada, lida, acolhida e vivida como Palavra de Deus, no sulco da Tradição Apostólica de que é inseparável.[20]


Como afirmaram os Padres sinodais, encontramo-nos realmente perante um uso analógico da expressão «Palavra de Deus», e disto mesmo devemos estar conscientes. Por isso, é necessário que os fiéis sejam melhor formados para identificar os seus diversos significados e compreender o seu sentido unitário. E do ponto de vista teológico é preciso também aprofundar a articulação dos vários significados desta expressão, para que resplandeça melhor a unidade do plano divino e, neste, a centralidade da pessoa de Cristo.[21]


Dimensão cósmica da Palavra


8. Conscientes do significado fundamental da Palavra de Deus referida ao Verbo eterno de Deus feito carne, único salvador e mediador entre Deus e o homem,[22] e escutando esta Palavra, somos levados pela revelação bíblica a reconhecer que ela é o fundamento de toda a realidade. O Prólogo de São João afirma, referindo-se ao Logos divino, que «tudo começou a existir por meio d’Ele, e, sem Ele, nada foi criado» (Jo 1, 3); de igual modo na Carta aos Colossenses afirma-se, aludindo a Cristo «primogénito de toda a criação» (1, 15), que «tudo foi criado por Ele e para Ele» (1, 16). E o autor da Carta aos Hebreus recorda que «pela fé conhecemos que o mundo foi formado pela palavra de Deus, de tal modo que o que se vê não provém das coisas sensíveis» (11, 3).


Este anúncio é, para nós, uma palavra libertadora. De facto, as afirmações da Sagrada Escritura indicam que tudo o que existe não é fruto de um acaso irracional, mas é querido por Deus, está dentro do seu desígnio, em cujo centro se encontra a oferta de participar na vida divina em Cristo. A criação nasce do Logos e traz indelével o sinal da Razão criadora que regula e guia. Esta feliz certeza é cantada nos Salmos: «Pela palavra do Senhor foram feitos os céus, pelo sopro da sua boca todos os seus exércitos» (Sl 33, 6); e ainda: «Ele falou e as coisas existiram. Ele mandou e as coisas subsistiram» (Sl 33, 9). A realidade inteira exprime este mistério: «Os céus proclamam a glória de Deus, o firmamento anuncia as obras das suas mãos» (Sl 19, 2). É a própria Sagrada Escritura que nos convida a conhecer o Criador, observando a criação (cf. Sb 13, 5; Rm 1, 19-20). A tradição do pensamento cristão soube aprofundar este elemento-chave da sinfonia da Palavra, quando por exemplo São Boaventura – que, juntamente com a grande tradição dos Padres Gregos, vê todas as possibilidades da criação no Logos[23] – afirma que «cada criatura é palavra de Deus, porque proclama Deus».[24] A Constituição dogmática Dei Verbum sintetizara este facto dizendo que «Deus, criando e conservando todas as coisas pelo Verbo (cf. Jo 1, 3), oferece aos homens um testemunho perene de Si mesmo na criação».[25]

A criação do homem


9. Deste modo, a realidade nasce da Palavra, como creatura Verbi, e tudo é chamado a servir a Palavra. A criação é lugar onde se desenvolve toda a história do amor entre Deus e a sua criatura; por conseguinte, o movente de tudo é a salvação do homem. Contemplando o universo na perspectiva da história da salvação, somos levados a descobrir a posição única e singular que ocupa o homem na criação: «Deus criou o homem à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher» (Gn 1, 27). Isto permite-nos reconhecer plenamente os dons preciosos recebidos do Criador: o valor do próprio corpo, o dom da razão, da liberdade e da consciência. Nisto encontramos também tudo aquilo que a tradição filosófica chama «lei natural».[26] Com efeito, «todo o ser humano que atinge a consciência e a responsabilidade experimenta um chamamento interior para realizar o bem»[27] e, consequentemente, evitar o mal. Sobre este princípio, como recorda São Tomás de Aquino, fundam-se também todos os outros preceitos da lei natural.[28] A escuta da Palavra de Deus leva-nos em primeiro lugar a prezar a exigência de viver segundo esta lei «escrita no coração» (cf. Rm 2, 15; 7, 23).[29] Depois, Jesus Cristo dá aos homens a Lei nova, a Lei do Evangelho, que assume e realiza de modo sublime a lei natural, libertando-nos da lei do pecado, por causa do qual, come diz São Paulo, «querer o bem está ao meu alcance, mas realizá-lo não» (Rm 7, 18), e dá aos homens, por meio da graça, a participação na vida divina e a capacidade de superar o egoísmo.[30]

O realismo da Palavra


10. Quem conhece a Palavra divina conhece plenamente também o significado de cada criatura. De facto, se todas as coisas «têm a sua subsistência» n’Aquele que existe «antes de todas as coisas» (Cl 1, 17), então quem constrói a própria vida sobre a sua Palavra edifica de modo verdadeiramente sólido e duradouro. A Palavra de Deus impele-nos a mudar o nosso conceito de realismo: realista é quem reconhece o fundamento de tudo no Verbo de Deus.[31] Isto revela-se particularmente necessário no nosso tempo, em que manifestam o seu carácter efémero muitas coisas com as quais se contava para construir a vida e sobre as quais se era tentado a colocar a própria esperança. Mais cedo ou mais tarde, o ter, o prazer e o poder manifestam-se incapazes de realizar as aspirações mais profundas do coração do homem. De facto, para edificar a própria vida, ele tem necessidade de alicerces sólidos, que permaneçam mesmo quando falham as certezas humanas. Na realidade, já que «para sempre, Senhor, como os céus, subsiste a vossa palavra» e a fidelidade do Senhor «atravessa as gerações» (Sl 119, 89-90), quem constrói sobre esta palavra, edifica a casa da própria vida sobre a rocha (
cf. Mt 7, 24). Que o nosso coração possa dizer a Deus cada dia: «Sois o meu abrigo, o meu escudo, na vossa palavra pus a minha esperança» (Sl 119, 114), e possamos agir cada dia confiando no Senhor Jesus
como São Pedro: «Porque
Tu o dizes, lançarei as redes» (L c 5, 5).




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